William Bonner não imaginava, mas eu me apaixonei pelo gráfico do desemprego. Ou melhor: pelo que ele não mostrava.

"A Bia sempre foi a parabólica, Marcelo. Ela não gostava muito de brincar, vivia entre os adultos escutando conversa." Minha mãe se queixando de mim, após alguma retrucada.
É tempo de quarentena, ela cozinhava uma sopa, enquanto eu e marido tomávamos café. É a hora do dia que interagimos mais. Eu e o Rafa, meu filho de 6 anos, nos atropelamos pela atenção deles, já que estamos em abundância de nós dois.
Minha mãe sempre foi durona, meu pai, manteiga derretida. Houve um equilíbrio de afeto comigo e meus dois irmãos, Ciça e Marcelo (outro Marcelo, cozinheiro e hamburgueiro). Nós três tivemos sempre muita autonomia, e pudemos fazer bastante escolhas erradas. Uma das que eu fiz, foi cursar fisioterapia por três anos. "Errada" ou consequência de ter que escolher aos 16, quando fiz a matrícula.
É, fui bastante antecipada na escola. Era a escola da minha família, a Sede da Sabedoria, em Cotia. Com três dias de vida, eu já habitava um carrinho na secretaria, e as minhas melhores lembranças foram construídas no pátio coberto, rodando pneu no areião, publicando escritas na feira do livro e tomando chá de hortelã com bolinho de terra no alto da quadra.
No centrinho da Granja, meu pai tinha uma adega de bebidas, carregada de caixas de vasilhame e cheiro de cerveja melada. Eu e minha irmã nos escondíamos entre as caixas, e quando a bagunça era grande, meu pai espantava a gente pra frente da loja. Lá a gente dobrava barquinhos de jornal pra soltar no córrego que passava há alguns passos, caçamos formigas de asas, ou saíamos para dar uma volta à cavalo.
O empreender estava em todos. Escola, adega, quiosque da sorvete, videoclube, entrega de gelo e espetinho. E eu ali, doida pra atender alguém, aprendendo com cada detalhezinho.
Fui uma criança "parabólica", porém bastante vigiada (e cobrada). Na primeira série, minha mãe me deu a primeira e única advertência escolar. Ela era professora de matemática e eu não parava de conversar. Lembro que ela tacou um estojo na minha carteira e falou da advertência, já emendando "eu não vou assinar!".

Eram tias, primos, avós, por todos os lados. Nas férias, descíamos para Santos pra cheirar o mar, comer queijadinha, assistir filme no Iporanga. A primaiada de sobrenome diferente, se encontrava no jogo de taco, na pipa, na raspadinha de groselha, ou na fila do protetor solar.
Com 14, e os negócios de pai e mãe indo mal, pedi pra trabalhar. Fui dobrar caixa no estoque de uma loja do Boticário, e em poucos dias, pude arrumar as prateleiras, a vitrine, ganhei um uniforme e fiz um curso de maquiagem. Puxei cliente na espera, aprendi a vender, cobrar, fechar caixa e passar hora na entrega do malote. Cresci.
Com a responsa da faculdade "mal escolhida", fui vender perfume de porta em porta. Fazia bilhetinhos a mão, com meu nome, número de telefone, espirrava perfume neles e subia as escadas das 24 torres do condomínio, colocando "meu cartão" embaixo das portas. Paguei os quase três anos de faculdade assim.
Um amigo da família me ofereceu um emprego na prefeitura quando fiz 18 anos, mas para isso eu tinha que estudar administração. O salário de R$857 em 2005 era muito bom, e administração era 40% mais barato que fisio. Troquei.

O serviço público por 4 anos foi montanha russa, me tornei uma adulta, com preocupações reais, dores, articulações, negociações... saí uma sobrevivente da política, e formada em Recursos Humanos. No meu último ano, desenhei meu primeiro projeto social, o Sacode, com apoio da prefeitura, levei recreação, médicos e dentistas para 4000 crianças nas periferias de Cotia. Me realizei.
Para por um fim na lambada da política, fui trabalhar como atendente de seguros numa multinacional. Um recomeço, com escalas e falas robotizadas, e quando me perceberam muito educada, jogaram para o produto funeral. Foram 3 meses de AXA, até chegar um telegrama me convocando para uma vaga de assistente de RH no Conselho de Química.
Oscar Freire, pensei...São Paulo. Será que sei chegar? Fui para declinar, mantendo meu plano de fuga do serviço público não promissor.
No prédio espelhado, ouvi música ambiente. Na porta da "minha sala" um caixa do Banco do Brasil, chique para quem só conhecia a hora-banco. Fui ao banheiro e tinha papel Neve. Papel Neve no serviço público, utopia, ri enquanto percebia que a rádio Nova Brasil tocava também no banheiro. Peguei a pasta com os documentos prontos para declinar da segunda posição do concurso, para a última, e pensei: Não mesmo?!
Aceitei considerando ganhar experiência em RH. Fiz amigos, ganhei VR alto e mais um monte de benefícios. Troquei um namoro longo fora, por um marido no andar de baixo. Virei a moça do balcão de sorriso fácil, dos eventos, das conquistas do casual day, do horário flexível. Renasci mãe do Rafa. Fui A da campanha do agasalho, da água para Minas, dos brigadeiros pró-África, a garota das causas sociais, a inconformada, inquieta e quase amarga pela estrutura que se mostrava a cada ano mais controladora e hierárquica.
Me sobrou as ruas. Não, não fui demitida. Num choque pós-matéria no Jornal Nacional, peguei uma lousinha, e escrevi "Está sem trabalho?", e ganhei ruas, praças, parques e padarias, escutando gente. A minha vontade de escrever currículos decentes, logo virou escola sobre o outro.
Ao longo de 2017, escutei mais de 800 pessoas em desemprego. Pessoas desconhecidas, àquelas que habitam os gráficos do JN e a fila do busão. Gente de todo jeito, de muita vida e histórias de valor.
Escutando, escrevendo e divulgando, fiz crescer a Cruzando Histórias. Deixei de ser RH generalista, a garota do recrutamento e seleção, e passei a distribuir abraços demorados e construir pontes entre pessoas. Em pouco tempo, 200 de volta ao mercado.
Fui embora do CRQ, beirando 10 anos. Soltei crachá e os cartões sedutores.
CH, como apelidamos, é rede de pertencimento e valorização de pessoas. Um suspiro no mundo do trabalho. Meu bom suspiro!
Hoje vivendo para mim, para o Rafa, para as escapadas a três na busca por lindas vistas, e para "isso", percebo que construí um novo caminho. Sou, somos, uma organização social que fortalece pessoas.
O desemprego é humano, real e bate na porta de milhares de lares. Aqui a gente trata com olho no olho, mãos suadas e uma vontade enorme de fazer diferente.
Agora, agosto de 2020, acordo cansada pela intensa Semana da Carreira, no furacão pandemia, num país em decadência. No espelho me percebo fortaleza, no olhar uma empreendedora social fiel a sua essência.
Hoje 142 pessoas carregam a lousinha comigo. 117 delas, são mulheres. Somos uma organização feminina, vivendo toda a nossa potência.
Sou mesmo parabólica, mãe. Percebo, enxergo, reconheço. Me apaixono fácil, tenho sonhos, e para eles não existem fronteiras. Pedi a Deus para ser ferramenta, e Ele me fez acreditar nos meus sentidos. Me levanto agora para fazer o que todos podem, mas quase ninguém faz: escutar e cruzar histórias. Assim conheci diferentes realidades, fiz amigos, gravei um filme, estou escrevendo um livro. Sigo construindo um pedaço de mundo com o amor, paz e respeito que acredito, por mim, pelo Rafa e por toda gente como a gente. Gente que precisa e merece deitar consciente que sua história tem, tem sim, muito valor.

Doe e me ajude a cruzar mais histórias https://bit.ly/doacao-ch
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